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Resistência do povo preto: do despertar da consciência étnica à luta contra o racismo no Brasil

  • Foto do escritor: O Canal da Lili
    O Canal da Lili
  • 21 de nov. de 2022
  • 8 min de leitura

*Texto: Eliana Teixeira

Sem apoio total do Estado aos povos que foram escravizados e aos que ascendem de pessoas trazidas forçadamente do continente africano para o Brasil, os afrodescendentes resistiram e resistem até os dias atuais, constantemente se mobilizando pela garantia de direitos, enfrentamento à discriminação racial, superação aos privilégios destinados à branquitude. Diante disso tudo, há 50 anos, um grupo pioneiro realizou um ato evocativo à resistência negra, na noite do dia 20 de novembro no Clube Marcílio Dias, em Porto Alegre (RS). Nesse evento, Zumbi dos Palmares foi valorizado como herói. O grupo, segundo Agência Senado, era integrado pelos jovens pretos: Antônio Carlos Côrtes, Oliveira Silveira, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô) e Luiz Paulo Assis Santos. Assim como esses jovens do passado, outros de gerações posteriores seguiram e seguem lutando contra a ideia de liberdade concedida ao povo preto que, esse sim, precisou lutar por ela desde antes das aberturas oficiais das senzalas e, literalmente, passar pelas porteiras das fazendas, descer as escadarias das casas grandes, sem rumo, comida ou qualquer restituição em pecúnia, ainda que tão somente como garantia de sobrevivência.



E O Canal da Lili ouviu duas jovens pretas – Ingrid Lopes, 23 anos, estudante do último ano de Direito (já aprovada no exame da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil), e Valéria Almeida, 26, advogada - que contam nesta edição como é, no dia a dia, resistir e enfrentar o preconceito, resgatar a história da ancestralidade, distanciar-se do padrão da branquitude em busca da valorização cultural, histórica e étnica do povo preto.


Cofundadora do Coletivo Beleza Preta - um grupo de mulheres pretas moradoras de Piracicaba (SP) e região, de diferentes atuações profissionais, que se reúnem desde 2018 para discutir temas relacionados à etnia, presencialmente na Casa de Hip Hop de Piracicaba, ou em eventos on-line -, Ingrid Lopes relaciona a valorização da beleza da mulher preta ao fortalecimento da autoestima e da consciência, considerando o trabalho de resgate interno que impacta no exterior feminino. Isso aconteceu com Ingrid, mas nem sempre foi assim, já que estudou na infância e adolescência em escola do setor industrial onde predominavam pessoas brancas.


“Minha convivência foi com pessoas brancas, mesmo não sendo uma escola particular, tinha muitas pessoas brancas. Dava para contar nos dedos: acho que de 23 pessoas, três eram negras, por série. Para mim, foi difícil criar essa consciência (negra), tanto que eu tive uma fase da minha pré-adolescência muito louca e eu comecei a gostar de qualquer coisa que hoje em dia eu não gosto de forma alguma. Mas como pré-adolescente era a única forma que eu tinha de me inteirar com as minhas amigas”, relembra Ingrid.


O despertar da consciência

Da retirada do mega hair à adoção do black power, passando pelo fim da solidão da mulher preta, Ingrid conta que o despertar da consciência foi um processo trabalhado junto a outras mulheres, principalmente, nos encontros do Coletivo Beleza Preta. “Quando eu tinha 16, 17 anos, comecei a sair, ir pra balada black, a participar de bastante movimento social. Acabei conhecendo outras pessoas pretas, a ver que existia pessoas iguais a mim, com o mesmo cabelo, com a mesma cor, com mesmo formato de nariz, tamanho de boca, então foi aí que eu comecei a me descobrir como mulher negra”, relata a estudante de Direito.


Durante o despertar da consciência negra, Ingrid entendeu o porquê de ter sido deixada de lado na adolescência, quando o assunto era paquera. “Sempre fui muito comunicativa, na escola era a menina que apresentava show de talentos, mas eu sentia muito essa questão de que todo mundo só me via como amiga superlegal, mas ninguém me via de uma forma amorosamente. Na hora da paquera, era a menina preta invisível, principalmente na adolescência. Demorei muito até para beijar. Minha vida amorosa eu comecei, realmente a ter, quando eu comecei a sair ver caras que eram pretos, que se interessavam por mim, porque enquanto eu vivia ali naquele nicho branco, não conseguia me relacionar”, detalha Ingrid, que hoje namora há dois anos. “É um cara preto, que entende muito as minhas lutas", completa.


Trabalhar a valorização da beleza da mulher preta, destaca a estudante de Direito, a fez romper os traumas causados pela branquitude. Outro ponto, observa Ingrid, é o fato da mídia, atualmente, abrir mais espaço a mulheres pretas que fogem do padrão imposto pela sociedade, como a cantora e influenciadora Jojo Todynho, a atriz Cacau Protásio. “São mulheres reais que representam a pluralidade. Eu cresci não me sentindo representada em nenhum local de mídia e nem na escola. A partir do momento que eu vejo que uma mulher preta é igual a mim, que tem o mesmo cabelo, a mesma cor, nossa, eu me sinto assim no paraíso!”, alegra-se Ingrid, por se sentir também representada enquanto mulher gorda.


Ingrid Lopes: “As marcas não são boazinhas, elas viram o poder de compra do povo preto" - Imagem: Divulgação

O poder do black money

Uma das conquistas que contribuem com a valorização da mulher preta, enfatiza Ingrid, é a disponibilidade de produtos próprios para o colorismo – várias tonalidades de peles – das afro-brasileiras. “As marcas não são boazinhas, elas viram o poder de compra do povo preto, o que antes o racismo não as deixava perceber. Mas agora veem que nós pretos temos o poder de compra, a gente tem o tal do black money, e começaram a fazer os produtos porque querem vender. Na França, a gente já tem tocas de natação para o nosso cabelo black power; temos sapatilhas de balé da nossa cor. Hoje em dia, o mundo está muito mais inclusivo pelo black money e também pelas pessoas que abriram a boca para reivindicar isso”, avalia Ingrid, que tem um perfil no Instagram com 2.500 seguidores com quem compartilha dicas de beleza, moda, comportamento.


O racismo vivido pelas gerações

A advogada Valéria Almeida, 26 anos, destaca que o racismo é, sempre foi e vai continuar sendo algo muito difícil para todas as gerações de quem sofre, sente na pele a discriminação racial. “Vai se alterando o tempo, então existem outras formas de praticar o racismo. Por exemplo, quando a gente fala de tecnologia, de modernidade e todas essas questões, existe uma ideia de que a sociedade está evoluindo, mas é interessante a gente pensar se essa evolução, entre aspas, da sociedade, essa modernização, nada mais é do que a manutenção do status quo, a manutenção daquilo que já existe, daquilo que está estabelecido. A sociedade branca é a favor sim, porque a branquitude se utiliza da modernização como uma ferramenta de exclusão. A modernização nada mais é que uma ferramenta de exclusão. Acredito que a discriminação foi aperfeiçoada, colocando pessoas ainda muito distantes da evolução do metaverso, por exemplo”, analisa a advogada.


De acordo com Valéria, quando se pensa que a sociedade não vai voltar a ser analógica e que a maioria do povo preto não tem acesso e conhecimento das novas tecnologias, ocorrem as novas formas de exclusão impostas pela branquitude. “O povo preto já está sendo deixado atrás porque isso vai para outros campos. Por exemplo, com essa nova internet, dentro de todas as tecnologias, você vai poder fazer transação tanto de bitcoin quanto de um carro; você vai poder alugar uma casa. Vai ser necessário pensar políticas públicas para pessoas que não vão ter acesso a essas tecnologias. Vão existir novas formas de viver que vão exigir a existência das pessoas nesse novo mundo e as pessoas pretas não vão ter acesso pela exclusão digital. Muitas pessoas pretas não vão conseguir competir no mercado de trabalho”, explica.


O racismo com “poder” institucional

Embora o racismo sempre tenha existido na sociedade brasileira, atualmente, pessoas racistas se revelam ainda mais, principalmente na internet. “Os racistas, por conta desse último governo (federal) se sentiram mais confortáveis, ou seja, essas pessoas sempre foram racistas, mas não podiam se expressar de tal forma e alguém passa a elas, entre aspas, esse poder de exercer esse racismo confortável”, afirma Valéria Almeida.


Valéria Almeida: "É preciso olhar os espaços de resistência, ouvir os mais velhos desses espaços para entender tudo isso e não cair no embranquecimento e silenciamento" - Imagem: Divulgação

Para a advogada, o momento no Brasil é distópico, numa sociedade onde pessoas pretas vivem opressivamente e assustadas diante do racismo estrutural. “Eu sinto muito medo, sendo bem sincera. Claro, que o medo não pode ser algo que nos paralisa, mas eu me sinto de certa forma muito exposta, ameaçada, sentindo que em determinados espaços eu não poderia existir ali. Então, não poder ser você mesmo em segurança, entrar em um carro de aplicativo e você quase querer sumir dentro do banco porque só a sua característica física já é suficiente para uma pessoa, que talvez não concorde com ela, fazer alguma coisa contra você, é assustador”, explica.


Uma forma que Valéria encontrou de evitar ou diminuir os possíveis ataques racistas, que já é adotada por algumas pessoas pretas, é não frequentar ambientes onde o racismo pode ser de modo mais “confortável” praticado por quem comete esse crime. “Há um tempo eu já presto muita atenção nos ambientes que frequento. Eu não acho que isso seja a solução, não deveria ser a solução, mas eu não tenho muito tato para lidar com um determinado tipo de violência, então para não ficar mais vulnerável a partir de uma resposta, eu evito frequentar alguns espaços. Eu evito lidar com determinadas pessoas, porque a partir do momento que eu não fico quieta diante do racismo sofrido, eu estou vulnerável. Se eu me defender de alguém que me agrediu, a minha defesa vai ser tida como uma violência e não interessa o que a pessoa falou para mim, o que ela fez para mim”, enfatiza.


A advogada relembra o caso ocorrido com o rapper DJonga em dezembro de 2021, quando o cantor foi acusado de agredir dois seguranças durante o jogo Atlético-MG e Athlético-PR, no Mineirão, após ser vítima de xingamentos racistas. “Eu não acho que ele estava errado. Isso é legitima defesa. Eu não acho que seja ilegítimo você se defender de determinadas formas a partir de uma violência que é uma reação a uma violência sofrida”, analisa.


O momento caótico, a fé e a esperança

Apesar do momento nacional conturbado, a advogada diz ter fé e esperança, que nos próximos quatro anos seja possível “desconstruir” muitas coisas ruins propagas pelo Brasil. Valéria destaca que, para a desconstrução do caos social é necessário que pessoas progressistas façam sua parte. “Essas pessoas são ditas como antirracistas mas já vivi uma situação de ter sido chamada a explicar uma violência que eu sofri num momento de lazer! Que antirracismo é esse, que você está praticando, pelo amor de Deus?”, indaga.


Para Valéria, o fortalecimento do povo preto está em sua independência, no entendimento de que há interesse da branquitude em não quer transferir seus privilégios. Ela também aponta para a necessidade do despertar da consciência étnica dos pretos de pele clara ou pardos. “Em algum momento da vida deles eles vão eles vão chegar a essa consciência, porque é inevitável. É importante saber quem eu sou, de onde eu vim, para aí entender aonde quero ir. Houve uma estrutura muito bem montada para que essa consciência seja um fracasso mesmo. É preciso olhar os espaços de resistência, ouvir os mais velhos desses espaços para entender tudo isso e não cair no embranquecimento e silenciamento, que levam até mesmo a uma depressão”, justifica.


A advogada Valéria Almeida e a jornalista Eliana Teixeira, durante encontro em um café em Piracicaba (SP) - Imagem: Divulgação

Apesar de conquistas significativas como as cotas para ingresso à vida acadêmica, a advogada avalia que isso não é suficiente na luta contra o racismo, considerando a violência sofrida pelos jovens pretos no Brasil. Segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, entre 2012 e 2019, a taxa de mortalidade por homicídio de jovens pretos foi 6,5 vezes maior que a taxa nacional. Já um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) mostra que, das quase 35 mil mortes de jovens entre 2016 e 2020 no Brasil, 80% eram de negros.


“Eu não poderia falar que existe uma situação melhor aos jovens, porque o extermínio dos jovens negros é uma coisa real. Não posso falar porque a gente está se formando na universidade a situação está melhor. É óbvio que melhorou a situação porque existem jovens formados, mas a realidade é muito distinta, dependendo da situação, mas enquanto um se forma o outro morre. A juventude tem que estar ligada em fazer o caminho de resgate (da ancestralidade), se desvencilhar do olhar do branco para sua vivência. Ter uma faculdade não vai te libertar. Não estou dizendo para ninguém desistir de cursar uma faculdade, não é isso. Mas não serão o dinheiro ou somente a faculdade que irão libertar os jovens pretos. É um caminho complexo, não é algo que foi decifrado por alguém. Temos, sim que nos capacitar, conquistar uma faculdade, ter dinheiro, e reverter tudo isso para o fortalecimento de outras pessoas pretas”, aponta a jovem advogada.


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