Para determinadas pessoas, fim de ano é época de retrospectiva, de colocar numa balança as coisas boas e ruins que aconteceram ao longo dos últimos 12 meses. Outras preferem esquecer os maus momentos e levar para o ano vindouro somente as experiências boas. E há aquelas que, por passarem pelas coisas mais improváveis, renascendo das próprias cinzas, possuem gratidão divina e tornam-se inspiração para outras pessoas, verdadeiros exemplos de resiliência. Após um violento ataque de bandidos armados com fuzis – armamento que deveria ser restrito às Forças Armadas -, no dia 6 de outubro de 2017, os guardas civis Marcos Rodrigues, 47, e Fernando Lima, 44, foram alvejados por nove e cinco tiros respectivamente, passaram literalmente pelo vale da sombra da morte, mas vivenciaram um milagre: o dom da vida!
Integrantes da Guarda Civil de Piracicaba em treinamento
E para celebrar 2018, O Canal da Lili traz, com exclusividade, a história desses dois homens, que no exercício de suas funções, não recuaram diante do perigo e hoje têm mais que um elo de amizade. Eles consideram-se ambos heróis, um para o outro, e agradecem a Deus pela oportunidade de seguir na jornada da vida.
Rodrigues, que atua na Guarda Civil de Piracicaba há 25 anos, e Lima, que está há 20 anos, faziam patrulhamento quando sofreram um atentado por bandidos que tinham roubado um carro forte na SP-304 Luiz de Queiroz. Naquele dia 6 de outubro, após os bandidos explodirem o carro forte na rodovia, entraram em Piracicaba e cruzaram em uma das ruas com patrulheiros da Guarda Civil. “Eles desceram do veículo, todos armados, quatro atiradores com fuzis, 762 e 556, e trocaram tiros com a guarnição”, relembra Rodrigues, que é subinspetor e instrutor de treinamentos na corporação.
Pela lei, os guardas civis podem usar como armamento uma pistola 380, sendo que alguns grupamentos utilizam calibre 12, o que não era o caso deles. Fernando Lima era o motorista da viatura e foi atingido nos dois braços. Levou um tiro na direção do coração, mas livrou-se de uma fatalidade por um detalhe: “Eu estava com um molho de chaves no bolso da camisa do lado direito, que livrou de ser fatal”, conta o patrulheiro que, nos dias anteriores da ocorrência, até pensou em tirar as chaves do bolso, mas por um divino esquecimento, não as tirou. “Naquele momento, achei que nunca mais iria ver meu filho, minha esposa e minha família... Será algo que jamais irei esquecer”, relata.
Mesmo com ferimentos muito graves nos braços, Lima percebeu a gravidade do amigo e superior hierárquico e, insistentemente, falava com ele, para que aguentasse, para que não morresse. Por minutos, para os dois foi como se o mundo tivesse parado e um dependia do estímulo do outro. “Sempre tive uma boa amizade com ele (Rodrigues) e depois de tudo isso, nosso relacionamento aumentou. Hoje, o tenho como meu irmão. Agora, ele faz parte da minha família”, emociona-se o patrulheiro.
SOBRENATURAL – Sobreviver a uma ocorrência que poderia ter sido uma tragédia, marcou a vida dos patrulheiros, de maneira sobrenatural. “Eu acredito hoje que... (uma pausa se faz, a voz embarga e os olhos marejam) as coisas acontecem para a gente se tornar uma pessoa melhor. Foi o que aconteceu comigo. Eu já tinha uma fé muito grande em Deus, acredito intensamente em Deus. Quando fui atingido, senti um silêncio muito grande. Foi a hora que, tenho certeza, foi a presença de Deus. Nessa hora, pedi misericórdia, pedi perdão por tudo que tinha errado na minha jornada”, conta entre pausas, Marcos Rodrigues, emocionado pelas lembranças.
Nesse momento, o parceiro Fernando Lima havia conseguido sair da viatura. De acordo com Rodrigues, se os dois tivessem ficado dentro do carro – a perícia contabilizou 72 perfurações no veículo – provavelmente teriam morrido. Rodrigues destaca que a situação de emboscada, em caso de tiroteio, foi procedimento “intensamente” treinado em 2016 e no início de 2017. “É que devido à potência, capacidade de tiro daquele armamento que eles (bandidos) estavam portando, não tem muito o que fazer. Fernando foi atingido nos braços e não conseguiu sacar a arma. Somente eu estava atirando. Depois que eu caí ao solo, graças a Deus, eles embarcaram no carro e foram embora”, recorda-se.
Segundo o subinspetor, o socorro foi muito rápido porque desde o início da ocorrência, eles passaram informações pela rede de rádio da corporação de todo o trajeto que estavam percorrendo, o que facilitou a chegada de equipes de apoio. “Essa sincronia foi tão perfeita por Deus, que fomos socorridos rápido, fomos para Santa Casa e uma equipe médica que só tenho que agradecer, nos atendeu. Fomos muito bem assistidos, tanto no primeiro atendimento, como depois na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), no quarto, até a gente ser liberado”, enfatiza.
Situação de emboscada foi procedimento “intensamente” treinado em 2016 e 2017
A esposa dele, que trabalha na Central de Monitoramento Eletrônico da Guarda Civil, estava em serviço no dia da ocorrência. “Ela estava a todo o momento, monitorando o trajeto da minha viatura, sabia que eu estava na ocorrência, escutou pelo rádio o próprio marido e o companheiro pedindo por socorro porque tinham sido baleados. Ela foi muito forte, me acompanhou nessa trajetória. No momento em que a gente está em coma, quem sofre, diretamente, é a família. Ela guardou nossos filhos... (a voz embarga e os olhos rompem em lágrimas) é algo que vou levar para o resto da minha vida”, emociona-se.
Ao dar entrada no hospital, Rodrigues chegou com apenas 400 mililitros (ml) de sangue. A maioria dos tiros o atingiu na junção da linha da cintura, entre o fêmur e os ossos da bacia e no tórax. Rodrigues perdeu 50% do fígado, teve uma lesão grave no baço, rim atingido, perfuração no diafragma, três costelas fraturadas e no osso da bacia, vários fragmentos de chumbo, totalizando cerca de 100 pontos entre abdome e perna. “A adrenalina era tão grande que não senti dor. Eu perdi minhas forças ao ser atingido no diafragma, não consegui segurar nem minha arma”, relembra.
Ao esmorecer pela gravidade dos tiros, o pedido de intercessão a Deus foi feito, destaca o subinspetor, “muito intensamente” em pensamento, considerando que não tinha força física para falar. “Pedi a misericórdia de Deus e fui atendido. Todo o tempo eu permaneci consciente. Escutava todo mundo falar, gritar comigo para que eu não partisse. Cheguei consciente na Santa Casa. Só entrei em coma profundo quando cheguei no Centro Cirúrgico, que vi a luminária enorme em cima de mim e apaguei”, detalha.
A situação de Rodrigues era gravíssima e o posicionamento da equipe médica fez a diferença. “Vi que entrou um médico, que repartiu a equipe de socorro, e comecei a ser assistido também. Senti cortarem a minha roupa toda, retirarem todo o equipamento e o médico falou: encaminhem para o Centro Cirúrgico que vai dar tudo certo”, conta.
O fato de ter uma vida saudável contou muito durante o socorro inicial. “O médico falou: você não tinha álcool, droga e não é fumante, o que facilitou muito nosso trabalho. Isso fez com que as hemorragias fossem estancadas muito rapidamente. Se eu fosse uma pessoa que bebesse frequentemente, fosse fumante, ou usuária de droga, dificilmente iria sair daquela situação”, considera Rodrigues.
Embora já tivesse participado de troca de tiros em outras ocorrências, Rodrigues nunca havia vivido algo parecido. E depois de tudo que passou – o subinspetor ficou 12 dias internado na UTI e mais três dias no quarto -, ele retornou ao trabalho no último dia 5 de dezembro.
RESILIÊNCIA – Quando uma pessoa passa por uma experiência tão próxima da morte, é comum surgir a pergunta: o que passa pela cabeça nesse momento? “Por incrível que pareça, não pensei em morte nenhum momento. Fiquei muito tranquilo, até porque depois do contato com um ser superior, que eu acredito que seja, fiquei muito tranquilo. Eu sabia que eu estava em estado gravíssimo. Quando eu passei pelo corredor, que me encaminhavam ao Centro Cirúrgico, eu vi minha esposa, meu sogro, minha sogra, e eu sabia que ia dar certo”, afirma.
No dia 11 de outubro, Rodrigues teve o primeiro momento de lucidez, abriu os olhos, quando ainda estava entubado. A felicidade foi tanta no que ele precisou ser induzido novamente por ter ficado nervoso. “Quando voltei no dia 11, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: procura algum sinal, alguma coisa concreta de que você está aqui (vivo) ainda. Olhei na parede da UTI e vi um relógio e imaginei: impossível do outro lado ter relógio. Logo depois, vi que o médico se aproximou da minha cama e no bolso do jaleco estava escrito Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba. Aí pensei; graças a Deus, estou aqui ainda! Logo depois, fui induzido porque comecei a ficar nervoso por causa da tubagem e me sedaram”, revela.
Pela gravidade da situação, no início os médicos o alertaram das sequelas que ficariam. “Não era esperado que me recuperasse 100%. Depois que eu acordei no dia 12, que foi Dia de Nossa Senhora Aparecida, eu tive uma melhora dia após dia. Os médicos nem acreditavam, perguntavam como eu estava e eu falava que estava bem. E estava mesmo, não sentia dor”, conta. No dia 12, relata o subinspetor, acordou como se tivesse despertado de uma noite de sono. “Tiraram o tubo. Chegaram minha esposa e meus filhos”, completa.
Para Rodrigues, a ligação entre ele e a esposa, que já era forte, tornou-se infinita. “Ela é muito importante para mim, sempre foi, nossos filhos... e a coisa mais gratificante é você voltar... (nova pausa) do coma e ver ao lado da sua cama sua esposa e seus filhos. Eles estavam lá, graças a Deus! Fiquei muito feliz”, emociona-se.
No leito da UTI, sempre havia uma fisioterapeuta, de manhã e à tarde, para que Rodrigues voltasse a respirar com naturalidade. Ele ainda faz exercícios e, inclusive, tem uma filha que está se formando em fisioterapia. “É um privilégio ter uma fisioterapeuta na minha casa. Minha filha me ajuda bastante. Até agora, não senti nenhuma sequela. Caminho, respiro normalmente e minha voz já voltou ao normal”, ressalta.
FAMÍLIA E ORAÇÕES – Fernando Lima afirma, sem duvidar, que a sobrevivência dele e de Marcos Rodrigues foi um “verdadeiro milagre”. Passados os dias mais difíceis, Lima destaca que as orações foram “primordiais” para a recuperação de ambos. “Tivemos muitas pessoas que se manifestaram das melhores maneiras possíveis”, destaca. Ao contrário do amigo, Lima ainda não retornou ao trabalho. “Minha família e meus amigos têm me dado total apoio. Minha esposa e meu filho têm sido a base fundamental para a minha recuperação. Não tenho previsão de retorno, pois ainda tenho que fazer, semanalmente, curativo no meu braço”, enfatiza.
Casada há 27 anos com Marcos Rodrigues, Adriana trabalha há 19 anos na corporação. Ela acredita que a profissão escolhida os torna mais fortes para lidar com a morte. “Infelizmente, em nossa profissão trabalhamos com a morte ao lado. Quando saímos de nossas casas, não temos a certeza que retornaremos. Somente quem trabalha e leva a sério a nossa profissão, sabe do que eu estou falando. E era exatamente isso o que eles (o marido e o amigo) estavam fazendo, desempenhando as suas funções. Temos que somente contar com a experiência, treinamento e certamente com Deus. A fé jamais nos faltou...em momento algum”, ressalta.
Adriana: "Quando saímos de nossas casas, não temos a certeza que retornaremos"
Apesar de ser calejada pela atividade profissional, Adriana admite que ter visto a situação dos filhos do casal, diante do acontecido com o marido, foi “muito difícil e triste”. Ela sentiu como se tivesse perdido o chão. “Eles não mereciam passar por tudo aquilo que passaram. Foi desesperador, angustioso... se não fosse a nossa fé, que era tudo o que podíamos ter, contar com Deus, pois os médicos já tinham feito a sua parte, não teríamos suportado”, conta.
Embora tenha ficado apreensiva com o estado clínico do marido, Adriana afirma que “tinha a certeza que Deus iria dar uma chance a ele”. Ela permitiu que os filhos acompanhassem o estado gravíssimo em que o pai se encontrava, porém omitiu alguns diagnósticos, com o objetivo de poupá-los de mais sofrimento. “Tentava e acalmá-los, dizendo que tudo iria terminar bem. Em alguns momentos eles também me acalmaram. Tenho filhos abençoados e iluminados, que suportaram passar por tudo sem perder a fé. E eu sabia que meu marido, ser humano de coração enorme e bondade sem fim, não merecia passar por aquilo, mas o que nos bastava era rezar”, relata. “Esse fato veio para provar mais uma vez que milagres existem e que Deus é maravilhoso. Se você tem uma religião acredite nela e confie”, completa.
APRENDIZADO – Para Adriana, a experiência vivida, apesar de não ter sido boa, trouxe aprendizado. “Acredito que todo mal vem para um bem maior, para evoluirmos, pois nada nessa vida é por acaso e estamos aqui para aprender, evoluir e retornar aos braços do Pai”, avalia. Para ela, a situação também serviu para mostrar quem realmente são as pessoas que os amam e são amigas. “Os verdadeiros permaneceram ao nosso lado nos momentos de dor, de sofrimento, de angústia, oferecendo o ombro, uma palavra. E era somente o que precisávamos naquele momento. Somos eternamente gratos a todas as pessoas que auxiliaram nossos filhos e a todos que se preocuparam com a recuperação dos nossos guerreiros, à equipe médica, enfermeiros, fisioterapeutas, cozinheiras e pessoas encarregadas pela limpeza, segurança do hospital, ao Comando da Guarda Civil, guardas da escolta, guardas que resgataram os dois e a todos os guardas que auxiliaram de alguma forma”, complementa, agradecendo ainda aos filhos e familiares.
Apesar da atitude corajosa diante de bandidos fortemente armados, Rodrigues não se vê como lenda ou herói. “Fiz o que muitos fariam. Tentamos dar a resposta com o pouco que tínhamos. Infelizmente, não deu certo, fomos alvejados. Pode ser que no íntimo de cada um eu tenha até marcado história. Mas nós vivemos num país em que o policial não tem valor. Hoje, eu enxergo o Fernando como um herói e o Fernando me enxerga como herói. Um para o outro, nós somos heróis e irmãos, porque nós nascemos novamente. Temos duas datas de aniversários. Eu ajudei a salvar o Fernando e o Fernando ajudou a me salvar”, considera.
Para ele, a experiência serviu para entender o quanto a vida é curta e que reclamar dos acontecimentos não adianta. “Problemas todos temos, mas nós temos que aprender a solucionar os nossos problemas. Se eu sinto ódio, se eu sinto raiva, se eu sinto tristeza, sou eu que estou sentindo, não o outro. Temos que viver plenamente, manter a fé e terminar a jornada sempre acreditando que Deus existe. Resiliência sempre, essa é a palavra-chave”, recomenda.
FOTOS: Arquivo pessoal